segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Preto e Branco


Preto e branco
Gabriela Prado

Já sentada meus olhos se recusavam ao que era natural, abrir.
Abriram, e antes que o mundo pudesse clarear, fecharam.
"Desisto", foi o que tive tempo de pensar, logo a recepção tornou-se evasiva, o corpo despencou.
O cheiro macio de lençol me envolvia como um corpo fresco em um ato de parasitismo, como você, fagocitando a única parte boa que restava do meu todo ruim.
O grito ardido do relógio, que antes alfinetava minha paz, parecia mais uma sinfonia áspera, tal qual uma boa ópera urbana, agradável aos ouvidos devidamente apurados.
Já sem razão para lutar, suspirei em sinal de rendimento.
Bandeira branca.
Mas não era bandeira... era fronha.
Não, já não era fronha... era sonho.
Sereno devaneio. Branco como uma página vazia, uma tela que anseia pela gota de tinta que que a libertará de sua seca fumegante, libertará do tédio insonso de sua essência.
Chega então você, com as feições distorcidas e palavras coloridas, disfarçando intenções preto e branco.
Eu já sabia...
...preto e branco...
...Mas o toque da respiração deslizando, o calor da mentira na pele...
...subindo ... descendo...
... percorrendo terra de ninguém, ainda me fazia bem. Decidi aceitar, deixei mais uma vez que caísse sobre mim todo o peso da sua alma, e me esmagasse, me sufocasse. Cantei para você aquela canção que sempre te faz sorrir. E com a caricatura de sua risada ainda em meus olhos, encostei as pálpebras, descansando a vista acelerada, o peito confuso. Quando um sussurro gelado irrompeu a sanidade, cortando minha carne, causando dor.
Eu já sabia...
...sabia de tudo...
...Mas não era real, nem mesmo o saber.
Abriram- se os olhos, a luz invadiu a calma como uma garoa fina perfurando o céu negro, a boca acompanhou em um grito. Não vinha de dentro. O relógio insistia. Barulho irritante, indigesto.
Em vão seria adiar, forcei o corpo para frente, para cima. Mas o cansaço era maior, era físico, mental. Não era nem cansaço, era falta de vontade. Falta de coragem de encarar uma decisão tão solitária, um mundo novo no qual já não existia você.
Hoje não, decidi ficar.
A vida é longa o suficiente para que todo o desgosto seja vivido. Concedo-me então ao menos uma manhã de sonho.
Que venha a felicidade em parcelas, em fiapos. Não para mim. Não no meu mundo. Nosso.
Nele é tudo seguro, tudo é tão pleno. Não fosse pelo lúgubre despertar, irradiando o escárnio dos meus desejos, o rompimento da minha razão.
Se ao menos eu soubesse qual de tantas é de fato a razão dos lúcidos.
Um dia as explicações fizeram sentido, hoje parecem distantes demais para se entender.
Um dia, nesse mesmo quadro escuro existiram formas, mas você partiu levando-as embora, astro evanescente da minha imaginação.
Já não cabe mais tanta loucura em uma só existência.
Tenros delírios...
...gradualmente perdem sua graça.
Hoje sim, é preciso.
Para mais de uma realidade é necessário também mais de um ser, o que não cabe mais a mim. Já não sou capaz de recriá-lo, nem mesmo viver por você.
E assim, de maneira dúbia, conheço o fim. Sem saber se o abraço ou recuo em frente sua imensidão.
Outras chances não fugirão à nossa vontade. Somos bicho. Tudo é vontade. Como gatos esperamos por uma resposta certa nesse jogo das sete encarnações. Agora são seis.
Se vivêssemos em outra vida, tenho certeza que daria certo. Mas nessa já erramos demais.
Erramos um pelo outro, por nós mesmos. Erramos os segundos, as vírgulas, os soluços. Erramos por errar, por tentar.
Erramos desde o dia que pensei ter acertado, enfim, erramos por pensar, por muito, por pouco, nunca um meio disso.
Entre a sobriedade e a loucura, nos embriagamos no nada, vazio e viciante nada.
Hoje sim.
Depois de tanto tempo me proíbo a esperar, nem bem, nem mal, pois de você tudo são vírus, vermes em cavalo de tróia, que comem a carne e se afogam com os ossos.
Quem te deu esse direito divino sob a mente e o corpo alheio?
Me pergunto e assim permaneço, seduzida pela ignorância que proporciono a mim mesma.
Nos deterioramos em um vontade tóxica, ao aroma da fome. Nos entregamos sem culpa a um destino fantasiado, prometendo a nós mesmos a irrealidade desse gozo.
E assim apodrecemos como o lixo que nos tornamos, sem culpa, sem pena, sem sentir nada mais, a não ser o gosto sádico dessa orgia de egoísmos.
Mas se tudo fosse em outra vida, ai sim as coisas seriam outras.
Agora já sem palavras, resta o adeus. E o desejo sincero de um breve definhar, pois comigo espero que assim seja. Que a rispidez do mal querer perdoe nossos destinos, também nossos instintos. E que a tolerância a nossa condição, traga um dia a liberdade, de fato.