quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Fora de tom

Fora de tom
Gabriela Prado




Ele dizia gostar de cantar, de compor, mas já fazia tempo escrevia coisas que não sabia o que eram. Sua boca se movia em uma inércia constante, ele não sentia mais suas palavras.
Mas suas letras ainda feriam os olhos de mentes ingênuas, fazia despejar gotas quentes nos rostos virgens, cobertos de pureza. A pureza é assim, carrega uma palheta de sentimentos tão frescos, tão coloridos, para ele lembrava um pouco o céu...
... tão forte... tão sereno.
Como qualquer artista, um dia ele sentiu tudo aquilo, um grito de tudo, de vida. A dor, o êxtase e finalmente as lágrimas corriam e saltavam quando sua nova canção era abafada pelo som das risadas cansadas. Ele ainda lembrava desse dia, que hoje soava tão falso. Talvez tivesse sido apenas um sonho, quem sabe o frio de seu coração não estivesse congelando também seus pensamentos.
Pensamentos... é às vezes ele lembrava... às vezes ele queria poder odiá-la novamente, se ao menos conseguisse trazer o ódio de volta à memória...
Aquela bruxa o enfeitiçou sem sombra de dúvidas, bruxa do pior tipo era aquela mulher. Fez com que ele, tão vivo, se tornasse um fantoche, um boneco. Homem seco, cético, só...

...abandonado por ele próprio.

Engraçado pensar agora, tantas vezes foi o amor o tema de suas composições.
Amor, o sentimento que venerava, apesar de não conhecê-lo. Talvez fosse essa a razão.
Faz tanto tempo...

Já era bem tarde quando deixou o Boteco do Boêmio, bar onde costumava tocar com sua banda toda sexta-feira.
O baixista, um de seus amigos mais antigos lhe deu uma carona, pois apesar de morar muito próximo ao bar, as doses que tomou ao longo da noite o levaram para um pouco mais longe.

O amigo apertou o número de seu andar e se despediu. Ao abrir a porta do elevador, ele percebeu que não lembrava mais qual porta era a sua. No escuro de sua mente ele buscava algo que pudesse lhe ajudar; enxergava alguns trechos de canções, um rosto estranho cercado por outros, uma risada bonita no ar, os olhos que tentavam roubar seus pedaços enquanto cantava, mas nenhum número clareava.
...62, talvez 62.

Ele tocou, ela abriu. Não se parecia com o estranho homem, magro demais, alto demais, obcecado demais por computadores e pouco demais por atividades higiênicas, com quem dividia o apartamento. Se bem que no estado em que se encontrava não seria muito estranho confundir.
Mas ela era linda. Até mesmo desfocada; e era tão ela que ninguém mais poderia ser. Aquela garota já tinha lhe visto antes, sabia quem era; chegou até mesmo a assistir sua banda tocar uma vez, por curiosidade. Ao abrir a porta ela não imaginava o que o havia levado até lá, mas sabia de todo o resto.
E ele entrou...

Na manhã seguinte ele já não queria mais encontrar sua porta. E assim foi por quase 7 meses, vivendo de forma assustadoramente plena, um sentimento de abundância afogava seus olhos; só isso bastava. Em sua mente embriagada, ele acreditava que finalmente havia encontrado o significado de amor.

Não, ele ainda não sabia completamente.

Depois de 214 dias dançando em uma dessas canções clichês, ele alcançou a superfície; deixou o ar irritar a face; foi seu primeiro choque de realidade.
Foi no 215º dia que com toda calma que conhecia, ela sibilou aquelas palavras afiadas, disse que não podia continuar, aquela canção havia terminado e era hora de se mudar; compor um novo romance. Ela foi... ele ficou.

No primeiro mês ele se sentiu surdo, o escuro que gritava por dentro era alto demais para que qualquer outro som pudesse ser ouvido. No segundo, ele passou a gritar junto com seu peito; uma nova melodia começou a nascer, ela era tão triste quanto ele acreditava ser, seu sabor era de angústia destilada. Finalmente no terceiro mês veio o apagão total, o peito parou; ele parou; o calor que exalava de sua mente simplesmente cansou. Sem dor, sem nada.
Fora de tom, era essa a definição exata. Ele estava oco.

Foram dois anos completos vivendo dentro desse abismo,cultivado diariamente, mas naquela sexta feira seu telefone tocou de forma diferente. Era o baixista, o show havia sido cancelado... ... ... ...As palavras que saiam do telefone pareciam zunidos, por um momento ele ficou observando os pequenos buracos por onde a voz chamava. Uma estranha combinação de palavras o fez despertar.

"Acho que ela voltou. Fui receber o pagamento do último show e tenho certeza que era ela que estava lá, uma risada cheia de melodia preenchia todo o espaço vazio do bar, enquanto as outras apenas riam. Espero que não seja um problema para você! "

" Ela? "





Silêncio.
E então, todos eles voltaram, todos de uma única vez.
Que sensação estranha era aquela, ele rugia, ele uivava, ele hesitou.


Um comentário:

  1. "A música clássica do amor é em tom maior, a romântica em tom menor. O amor moderno é uma fraca melodia, sobreinstrumentada."

    Hugo Hofmannsthal

    ResponderExcluir