quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Ato nº 2


Ato nº 2

Gabriela Prado


Foi assim, como de costume, doce e áspero.
A luz quebrava o tom acinzentado de seu quarto, dourando os corpos soltos na cama, presos pelo sono, presos no lençol. Você ainda respirava baixo e ritmado, quase como se cantasse em sonho. Eu revezava o movimento dos olhos entre os dois grande eventos que aconteciam simultaneamente, a canção suave que saia de você e o número de dança logo ao lado. No qual, iluminados por um dos feixes de sol, pequenos pontos de poeira remexiam e deslizavam de forma graciosa ao som de sua melodia.
Meu braço esticou procurando por um relógio, ou jornal, algo que me provasse que o tempo era real, que não havíamos sido devorados por uma espécie desconhecida de triângulo das ilusões ou tropeçado em um universo paralelo. Pensei melhor, se fosse, deveria deixar ser então. Eu não precisava do tempo, preferia seu oposto.
Você parecia também não se incomodar, dormindo, suspirou. Logo seus olhos abriram sorrindo.
Eu sorri.
Era só uma manhã de outono.
Era minha manhã de outono. E se eu dissesse que já havia assistido cada passo daquela representação, mentiria.
Você percebeu meus olhos e o que apreciavam curiosamente. Mas sem o maestro para guiá-las já não tinham a mesma sincronia.
Puxada para perto do seu peito, aconcheguei meu rosto e desliguei a mente. Sem ao menos pensar, palavras saíram.
“Quem é você?” – perguntei, sem ter certeza se eu mesma poderia responder, e insisti – “Saberia responder, sem devaneios, sem divagações. Sem medo, ou receio de deixar-se ver. Saberia responder tal pergunta?”
Ele parecia não entender, talvez fosse apenas uma brincadeira, mas não sabia ao certo qual resposta daria. Eu percebi sua incerteza, os olhos calmos pareciam apenas confusos. Ele arriscou.
“O que você quer dizer? Você sabe quem eu sou. Sabe quem eu fui e provavelmente quem posso um dia me tornar. Mas não é essa sua pergunta. O que você realmente quer?”
Me divertindo com a situação continuei.
“Eu sei bem quem é você e essa nunca foi a questão. Mas às vezes te vejo embarcando dentro de devaneios tão imensos, que temo que não encontre o caminho de volta.” – repensei a próxima frase, a ideia não era ofendê-lo ou ao seu trabalho, mas precisava seguir. – “Em alguns momentos consigo notar a essência de sua alma perder-se em meio a intensidade de seus personagens. Vejo cada feição desfigurar-se, tal como em uma face de metal, na qual seus olhos, seu sorriso, curvam-se de forma delicada, dando vazão à outras formas, que já não posso reconhecer.”
“Você consegue perceber o quão absurdo é o que está falando? Cada uma das palavras ditas até esse momento, essas sim são devaneios. Não posso entender seu medo” – suspirou antes de prosseguir – “Que eu me perco dentro de meus personagens? Mas é exatamente para isso que sou pago. É exatamente isso que me faz tão bom quanto sou. O que importa não é quem eu sou quando em cima de um palco, e sim, aquele que volta para casa ao término do espetáculo. Esse sou eu e você sabe muito bem. De onde vieram tantas dúvidas, receios?”
Ele não conseguiria entender. Talvez não fosse nem mesmo ele falando, talvez fosse apenas um de suas falas ensaiadas.
Tentei uma última vez.
“O que temo não o fato de que você vá, e sim de que você não volte. Uma vez que atravesse o espelho, pode ser o suficiente para querer lá permanecer. Já quase me perdi por esses mundos mais de uma vez, sei bem o quão fascinante são as razões para ficar e isso você não pode negar. Uma vida fácil, vivida por momentos de encenação… não minta dizendo que não é algo tentador” – podia perceber sua feição se desfazer novamente, dessa vez nascia um rosto sério, a luz já não nos iluminava mais. Seu olhar era tão sombrio quanto a verdade pode ser, quando arrancada de dentro de nós e exposta contra nossas vontades.
Ele tentou se defender, mas eu o interrompi.
“Ontem uma de suas cenas despertou algo em mim, o que me incomodava ganhou finalmente forma, e eu pude entender. Seu personagem andava de um lado para o outro divagando sobre a verdadeira essência de cada ser. Mas aquele não era o personagem, aquele era você”
Sem argumentos para contestar, preferiu relembrar uma das falas do personagem a que me referia.
“Recita melodia branda, preenche toda a sala com teu som/ Despretensiosas palavras, desfazem-se em sílabas/ Exalam dos seus lábios, umedecem os meus/ Teus sentidos, esses fazem razão/ O tecido desliza, dança, assente à resposta certeira/ Convictos, satisfeitos, os corpos continuam o diálogo/ Já não há mais o que falar.” – ele sabia o que estava fazendo, melhor que lutar contra a realidade, era me dar apenas a resposta que eu precisava ouvir – “Você mesma disse, se aquele era eu, essas palavras pertencem também a mim. Se era o que você queria saber, esse então sou eu. Sem medo, ou receio de deixar-me ver, eu sou ele, sou aquele, sou cada um deles que subo ao palco. Se for para me perder, me perderei dentro de mim mesmo, mas isso todos fazem, você faz. Não há medo.”
Satisfeita, respirei fundo. E com a cabeça ainda apoiada em seu peito, deixei que as partículas dançantes guiassem meus olhos às profundezas do sono novamente. Não havia nada mais para se fazer. Era apenas uma manhã de outono.

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